Sempre
procuro não discutir política em período de eleições porque
os ânimos ficam exaltados , as posições ficam radicalizadas e
podem ocorrer atos de violência.
Lembro-me
da primeira eleição do Lula em 27.10.2002, em que o refrão era o
“Lula-Lá”.
Era
a quarta tentativa de Lula, em que o PT insistiu em o lançar como
candidato a presidente quando, finalmente, teve êxito.
Cito
uma cena que retrata bem a insanidade desse período.
Eu
almoçava em um restaurante no Catete (bairro no Rio) quando
irromperam no recinto lotado, três moças empunhando bandeiras do
PT e aos gritos de “Lula-Lá”.
Foi
um tumulto generalizado e os seguranças retiraram as moças à força
do restaurante. Alguns comensais reagiram àquela intrusão com
xingamentos e ameaças de agressão.
Elas
se esqueceram da máxima de que devemos respeitar opiniões alheias
no que concerne a religião, política e futebol.
Eu
conhecia uma delas. Trabalhava em um banco e era uma ativista
sindical.
Passaram-se
os anos e eu a reencontrei. Hoje, madura e desencantada com os
políticos, ela é uma feroz anti-petista.
Ou
seja, continua uma radical.
Antes
de continuar meu relato, esclareço que não votarei em nenhum
candidato do PT. Portanto, sou insuspeito de defender a atual
presidente e muito menos de ser um simpatizante do PT.
Até
porque penso que sempre deva haver uma renovação de nossos
representantes e dos quadros dominantes.
É
um privilégio das democracias.
Ademais,
com o Mensalão e com a corrupção generalizada em empresas
estatais e em áreas da administração pública, o PT que
empunhava uma bandeira de retidão e honestidade, se desmoralizou e
penso que é a hora de deixar o poder.
Mas
hoje, 03.10.2014, li no “O Globo”, dois artigos bem oportunos
relacionados às eleições.
Um
é “Eleição”, de Paulo Nogueira Batista Jr., economista e
diretor executivo pelo Brasil e por mais 10 países no FMI. O outro
é “Pela Família!”, de Arthur Dapieve, colunista do segundo
caderno do O Globo.
O
artigo de Paulo Nogueira Batista Jr. retrata a amargura e o choque da
classe média com a repentina recuperação da Presidente Dilma nas
pesquisas eleitorais.
Já
a nota de Arthur Dapieve retrata o nepotismo na administração
pública e a candidatura de parentes de políticos para novos cargos.
É
o velho sistema viciado do nepotismo na política brasileira.
Senti
essa realidade quando trabalhei como gerente do BB na agência de
Maragogipe, no interior da Bahia.
Era
o período do Governo Fernando Collor de Mello.
Maragogipe
é um município muito grande com mais de 20 povoados.
A
população é de baixa renda com grande número de idosos
aposentados que, à época, recebiam pensões do INSS e também o
benefício rural, a pensão para aposentados rurais.
A
maior parte da população jovem, principalmente homens, se
deslocava para trabalhar em cidades maiores e, principalmente, na
capital Salvador.
Quando
cheguei à cidade aluguei uma excelente casa que ficava a cinco
minutos a pé da agência do BB. Assim não perdia tempo e nem
gastava dinheiro com condução de ida e volta ao trabalho.
Aliás
não existiam ônibus circulando dentro da cidade.
Os
táxis trabalhavam basicamente em percursos mais longos a povoados
distantes ou a outros municípios.
Para
as distâncias médias, era muito comum o uso de bois, jegues e
cavalos “sem sela”. Enfiavam uma bola na boca do animal presa a
duas cordas e montavam direto no lombo.
Para
mim, que estava recém-chegado do Rio, tudo era surpreendente.
Comprei
móveis simples e eletrodomésticos básicos já que ia ficar por
dois anos na cidade até completar o tempo para me aposentar.
Contratei
uma empregada e, ao estipular o salário , propús pagar o salário
mínimo até porque ela tinha cinco filhos menores e fora abandonada
pelo companheiro.
Ela
ficou assustada com a proposta e eu achei que tinha oferecido muito
pouco pois, no Rio de Janeiro, se registra na carteira de trabalho
um salário mínimo mas, na realidade, acaba se pagando quase o
dobro, além de outros benefícios.
Para
minha surpresa, ela agradeceu e me pediu que não revelasse para
ninguém o quanto ia receber pois os vizinhos iriam lhe pedir
dinheiro emprestado.
Na
cidade se pagava um terço do salário mínimo para empregadas
domésticas.
Esse
foi meu primeiro contato com a realidade da miséria em nosso país.
Ao
conversar com essa valorosa mulher e mãe dedicada, ela sempre dizia
que eu era “rico”. Fui obrigado a lhe dizer francamente que eu
não era rico, ela é que era muito pobre.
Ela
morava em uma “meia água” junto à casa de um parente. A
“meia água” era um único aposento, sem banheiro nem cozinha,
construído junto à parede de outra casa. Assim, não pagava
aluguel.
O
banheiro era a “casinha” no mato.
Usavam
fogão de lenha – não se gastava com gás.
Dormiam
ela e os filhos “juntados” numa lona.
E
quanto à comida? Tinham frutas do mato e do quintal , inhame,
algumas hortaliças, porcos, galinhas, patos, tatus, pacas, outras
caças eventuais e peixes pescados por eles mesmos no Rio Paraguaçu.
Compravam pouca coisa na feira.
Era
uma feira diferente onde as mercadorias ficavam expostas em esteiras
no chão e não em barracas como nas feiras do Rio.
A
carne era vendida sem refrigeração e sem embalagem. Se fazia um
buraco na peça de carne, se enfiava um barbante ou folha de
bananeira e ela era carregada no ombro.
Só
eventualmente se usava sabão. E assim mesmo sabão de coco.
Tomavam
banho de bacia ou no córrego.
Era
costume andar a pé ou com sandália de dedo – não se compravam
sapatos.
O
cabelo era cortado em casa.
Dormiam
cedo e acordavam cedo; não precisavam de luz elétrica.
Não
tinham televisão.
Por
isso, não havia despesa com energia.
Se
gastava pouco com roupas. Se comprava pano barato e se faziam as
roupas em casa com tesoura, linha e agulha.
Uma
despesa era com a compra de cadernos e lápis para a escola. Os
livros eram usados e doados por outras pessoas.
Nessa
situação, acabei “adotando” a empregada e os filhos.
Comiam
na minha casa, tomavam banho de chuveiro e, eventualmente, dormiam em
colchões sobressalentes que comprei para eles.
Comprei
agasalhos e livros novos para todos.
Quando
voltei ao Rio , dei para ela todos os móveis, utensílios de
cozinha, eletrodomésticos, inclusive TV, geladeira, fogão e roupas
de cama e de banho.
Foi
uma festa e fui levado às lagrimas por ter ajudado de coração
aqueles irmãos brasileiros pobres.
Pouco
se lia na cidade.
Havia
um senhor idoso que distribuia o jornal “A Tarde” para diversos
fregueses habituais.
Esse
senhor obtinha uma pequena renda com a distribuição do jornal que
chegava bem cedo, de ônibus, de Salvador.
Aí
surgiu um visionário que montou uma banca de jornal na praça
principal em frente ao BB.
Como
qualquer banca de jornal de cidade grande, na inauguração haviam
publicações de todos os generos. Dei força ao empreendedor e me
comprometi a comprar a Veja, Isto É, Seleções do Reader's Digest,
revistas sobre economia e até a Newsweek ou a Time.
O
dono da banca estava eufórico e o senhor que distribuia “A Tarde”
furioso com a inesperada concorrência.
Quinze
dias depois as revistas continuavam encalhadas.
As
únicas publicações que vendiam eram revistas pornográficas.
Logo
depois, por pressão do prefeito e do padre local , essas revistas
foram impedidas de serem vendidas.
A
banca fechou e o idoso que distribuia “A Tarde” voltou a
sorrir.
Em
conversa com um dono de farmácia , ele me revelou que a grande
renda da farmácia estava na venda de anti-concepcionais e
camisinhas.
Sem
TV, sem cinema, sem biblioteca, dormindo cedo, “aquilo” era o
melhor passa-tempo...
Não
havia stress na cidade, com exceção da trabalheira no banco.
O
ar era puro. A vida era tranquila, sadia e prazerosa.
O
Rio Paraguaçu era uma opção de lazer maravilhosa.
Tenho
saudade dos passeios de barco e caiaque.
Sinto falta das fartas fritadas e muquecas de peixe em praias de
rio.
Enfim,
os pobres ganhavam pouco mas levavam uma vida feliz.
O
grande temor daquela gente era perder o tal do benefício rural que
era um valor bem baixo.
As
filas no BB – o único banco da cidade - para o pagamento do
benefício, começavam a se formar à noite, no dia anterior ao do pagamento, quando eu
fechava as portas da agência. Essas filas se estendiam por vários
quarteirões e vinham pessoas de todos os povoados do município.
A
praça em frente ao banco ficava entupida de animais, charretes,
bicicletas, motos, carroças, caminhões, etc. Muitas pessoas passavam mal e
faziam suas necessidades em qualquer lugar. Outras desmaiavam na imensa fila.
O
assoalho da agência ficava completamente sujo com fezes de animais.
A
agência em si já era uma coisa horrorosa. O gerente anterior dizia
que eram as piores instalações do BB no país.
De
fato, era uma velha barbearia que foi desativada e adaptada para ser
agência bancária. A madeira do teto estava completamente corroída
pelo cupim. Todo dia, ao sair da agência, sacudia as roupas, a cabeça e
passava a mão pelos cabelos para tirar o cupim. Os apoios de madeira
das luminárias já haviam sido corroidos pelo cupim e as lâmpadas
ficavam penduradas pelos fios elétricos.
A
situação melhorou um pouco quando boa parte do telhado da agência
desabou em um temporal. Ao telefonar para Salvador alarmei o pessoal quando
comuniquei que o telhado da agência havia caído. Felizmente não houve
vítimas mas muitos documentos se perderam e máquinas se quebraram.
No
outro dia os técnicos vindos de SSA chegaram cedo e os trabalhos de
reconstrução começaram de imediato.
Outro
problema era a constante queda de energia. As máquinas se
desprogramavam e os funcionários tinham de trazer as baterias dos
próprios carros e colocar em cima das mesas para o acionamento das
máquinas.
Devido
ao tamanho precário da agência, alugou-se uma casa na virada da
esquina para servir como posto exclusivamente para recebimento de
contas e pagamento do benefício rural.
Para
chegar ao posto pelo fundo da agência principal, para levar ou
recolher numerário e materiais, era preciso passar por cinco
quintais de outras casas onde tinham porcos, galinhas, patos,
tartarugas, gatos e cachorros, isso sem contar papagaios e diversas
gaiolas de passarinhos. Também tinham vários lagartos verdes tipo
iguana, comuns na região. Muito capim, lama e árvores frutíferas.
Vez
por outra os animais entravam na agência pelo porta dos fundos da agência que
dava nos quintais.
De
uma feita ao ir sentar em minha cadeira levei um susto. Uma galinha
estava chocando seus ovos no assento macio. Sentei em outra cadeira e
deixei a galinácea chocar seus ovos em paz.
Um
rapaz que fazia a limpeza da agência, de propósito, colocou ração
nos dois degraus que davam acesso à saída para o quintal. A porca
que transitava pelos quintais – gigantesca – ao comer a ração,
entrou dentro da agência com seus oito porquinhos ao escorregar
pelos degraus.
O
tumulto foi geral e a agência parou.
Os
clientes se juntaram aos funcionários e arrumaram madeiras para
fazer uma rampa e, em um esforço conjunto, conseguiram empurrar a imensa porca e os porquinhos rampa a cima de volta ao quintal.
Infelizmente,
eu não tinha máquina fotográfica e nem existiam celulares para
registrar o evento. Seria um acontecimento digno de constar nos
anais do BB.
Comecei
a rascunhar um livro sobre essas e muitas outras passagens
pitorescas do período que passei naquela acolhedora e calorosa
cidade.
Estava
em dúvida sobre dois títulos: “Maragogipe, Meu Amor” ou
“Estórias de Maragogipe”.
Mas
por descaminhos da vida não levei o projeto adiante.
Quinze
anos depois, já no Governo Lula, voltei a Maragogipe.
Vi
algumas transformações na cidade. Muita coisa se modernizara.
A
começar pelo BB que estava em um prédio novo. Terminais bancários
haviam sido instalados.
As
crianças de minha época já eram jovens crescidos.
E
a renda geral do povo da cidade se concentrava no Programa Bolsa
Família (PBF) do Governo Lula (2003), muito embora os primórdios
desse programa tivessem sido implantados durante o Governo de
Fernando Henrique Cardoso, com o Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o
Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação.
Mas
foi Lula quem efetivamente ampliou esse programa que hoje atinge 45,8
milhões de pessoas em todo o Brasil.
As
pessoas pobres com as quais conversava colocavam Deus e Lula no Céu e a
Bolsa-Família na terra.
O
programa tem pontos controversos? Sim, tem !
Mas
o medo da perda dessa mísera renda oficial, mas que é vital para a
sobrevivência daquela gente paupérrima, permea a mente daquele povo
humilde.
E
aí concordo plenamente com Paulo Nogueira Batista Júnior, em sua
nota “Eleição” , quando diz que a elite brasileira pouco ou
nada entende de povo. E ainda quando ele pergunta se não é o que
estamos vendo , mais uma vez.
A
desigualdade social neste país, a pior do planeta, atingiu um nível
tão absurdo e fora de qualquer parâmetro, que conseguiu eclipsar
por completo a visão, a sensibilidade e o bom senso dos extratos
superiores da população, as chamadas classes média e alta, e
ainda mais dos dirigentes do país, principalmente os próprios
petistas, que se tornaram os maiores exploradores desse sistema
imoral.
Para
os pobres deste país, para os pobres de Maragogipe, para os pobres
retirantes nordestinos, considerações de justiça e ética passam
ao largo se comparadas com o terror da fome.
É
por esse prisma realista que devemos enxergar esta eleição.
Ela
se insere no contexto de luta de classes e de mudança de
mentalidade.
Adaí
Rosembak
Associado
da AAFBB e ANABB